Resumo: Este trabalho se insere na perspectiva da engenharia que busca colocar o desenvolvimento científico e tecnológico a serviço dos mais pobres. Trata-se aqui, então, de um dos distintos ramos da engenharia engajada de John Bernhard Kleba. No artigo, analisa-se a conformação do campo da engenharia e desenvolvimento social (EDS), a partir de 2003, no contexto de uma administração progressista no Executivo Federal brasileiro. Em um claro projeto de expansão universitária, esse governo criou políticas públicas de incentivo à extensão, à economia solidária e à tecnologia social, que potencializaram o surgimento e o fortalecimento do campo. Metodologicamente, o artigo combina análise de documentos com observação participante dos Encontros Nacionais e Regionais de Engenharia e Desenvolvimento Social (ENEDS e EREDS). Como principais conclusões, destaca-se a consolidação do campo EDS na engenharia e a sua progressiva transformação ao longo do tempo, que culminará com a criação da Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá. Essa transformação é evidenciada pela aproximação com movimentos sociais, que passam a estar presentes nos ENEDS e EREDS, e evidencia um novo horizonte para o campo, que se distancia de uma ideia de desenvolvimento sem sujeitos concretos, aproximando-se do ideal de construção de alternativas sociotécnicas com as classes populares.
Palavras-chave:EngenhariaEngenharia,Esenvolvimento socialEsenvolvimento social,Engenharia popularEngenharia popular,Extensão universitáriaExtensão universitária.
Resumen: Este trabajo se inserta en la perspectiva de la ingeniería que busca colocar el desarrollo científico y tecnológico al servicio de los más pobres. Hablamos de la “ingeniería comprometida” que ideó John Bernhard Kleba. A lo largo del artículo se analiza la conformación del campo de la ingeniería y el desarrollo social (EDS) a partir de 2003, en el contexto de una administración progresista en el Ejecutivo Federal brasilero. En el marco de un claro proyecto de expansión universitaria, se llevaron a cabo políticas públicas de incentivo a la extensión, la economía solidaria y la tecnología social que potenciaron el surgimiento y el fortalecimiento del campo. Metodológicamente, este artículo combina análisis de documentos con observación participante de los Encuentros Nacionales y Regionales de Ingeniería y Desarrollo Social (ENEDS y EREDS). Como principales conclusiones, se destacan la consolidación del campo EDS en la ingeniería y su progresiva transformación, que culmina con la creación de la Red de Ingeniería Popular Oswaldo Sevá. Esta transformación se evidencia en el acercamiento a los movimientos sociales que ahora están presentes en los ENEDS y EREDS, y muestra un horizonte que se aleja de una idea de desarrollo sin sujetos concretos y se acerca al ideal de construcción de alternativas sociotécnicas con las clases populares.
Palabras clave: Ingeniería, Desarrollo social, Ingeniería popular, Extensión universitaria.
Abstract: This paper aims at considering the benefits of putting scientific and technological development at the service of those who are most in need. We are dealing here, therefore, with John Bernhard Kleba’s ideas related to the creation of an “engaging” engineering. The makeup of the Engineering and Social Development (ESD) field —from 2003 onwards— is analyzed within the context of a progressive administration in the Brazilian government. In a project clearly designed for the expansion of universities, this administration created public policies that encouraged university extension, solidarity-based economy and social technology, which both made the field possible and strengthened it. Methodologically, this paper combines the analysis of documents with participant observation of the National and Regional Meetings of Engineering and Social Development (ENEDS and EREDS, due to their initials in Portuguese). Among our main conclusions, we highlight the consolidation of the ESD field in engineering, as well as its progressive transformation through time, which resulted in the creation of the People’s Engineering Network Oswaldo Sevá. Said transformation is made explicit by the progressive participation of social movements, which started to take part of the ENEDS and EREDS, showing a horizon in the field that abandons the idea of development without the participation of concrete subjects and assumes the ideal of constructing sociotechnical alternatives together with the popular classes
Keywords: Engineering, Social development, Engineering of the people, University extension.
ARTÍCULOS
Na trilha da contra-hegemonia da engenharia no Brasil: da engenharia e desenvolvimento social à engenharia popular
En el camino de la contrahegemonía de la ingeniería en Brasil: de la ingeniería y el desarrollo social a la ingeniería popular
On the Track of Brazilian Engineering’s Counter-Hegemony: From Engineering and Social Development to an Engineering of the People
Recepção: 01 Outubro 2018
Aprovação: 16 Dezembro 2018
Este artigo parte da análise do Encontro Nacional de Engenharia e Desenvolvimento Social (ENEDS), com o intuito de compreender alguns dos caminhos contra-hegemônicos da engenharia brasileira nos últimos quinze anos. O evento, que acontece anualmente desde 2004, pode ser compreendido como um espaço de encontro de estudantes e profissionais da engenharia que almejam atuar em consonância com questões sociais, políticas, ambientais, etc.
A hipótese que desenvolvemos neste trabalho é a de que o evento contribuiu para a construção de um campo de teoria e prática que surge no contexto da administração federal ocupada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) (2003-2016). Esse campo, inicialmente chamado de engenharia e desenvolvimento social, encontra seu espaço de construção no ENEDS e, com o passar dos anos, se modifica e possibilita, em 2014, a criação da Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá (REPOS).
Para realizar a análise proposta, seguimos algumas pistas de trabalhos recentes, como Kleba (2017), que caracteriza a engenharia engajada, assim como trabalhos já clássicos sobre o tema, como Kawamura (1986), que aponta o papel da engenharia no capitalismo. Conforme esta última, existiam, nos anos 1970-80, três vertentes principais da compreensão do trabalho da engenharia no país. A primeira delas tinha como horizonte a necessidade de modernização das grandes empresas privadas, de modo que elas pudessem se tornar mais eficientes e competitivas. A segunda tinha como perspectiva o desenvolvimento de tecnologia nacional. A terceira linha, minoritária, tinha como ideal colocar o desenvolvimento técnico a serviço dos mais pobres. A preponderância, a partir dos anos 1980, da visão econômica neoliberal fez com que a segunda vertente, nacional-desenvolvimentista, fosse sendo progressivamente suprimida, em prol da primeira.
A terceira vertente seguiu periférica. Contudo, a partir da metade da década de 1990, e em resposta às crises agravadas pelo neoliberalismo, ela experimenta um florescimento, manifestado no (re)surgimento de uma pluralidade de iniciativas, no Brasil e fora dele, de um horizonte socialmente comprometido da atuação em engenharia. Elas, em conjunto, constituirão aquilo que Kleba (2017) chama de engenharia engajada. Seriam exemplos disso movimentos como humanitarian engineering (Nieusma e Riley, 2010); engineering for social justice (Riley, 2008); e o objeto de análise deste artigo, o campo da engenharia e desenvolvimento social (Alvear et al., 2017).
Em comum, essas práticas traduzem novas diretrizes profissionais, éticas e educacionais voltadas para a profissão da engenharia em sua relação com o Estado, o setor privado e a sociedade civil (Kleba, 2017). Elas, entretanto, são bastante diversas quanto aos objetivos intencionados, que podem ser a:
“(...) disseminação, ou seja, a inclusão social com acesso a tecnologias já disponíveis; a otimização tecnológica; e a revolução tecnológica. Tome-se como exemplo os automóveis. Pode-se
permitir aos excluídos adquirir carros (inclusão), pode-se projetar carros menos poluentes e que evitem acidentes (otimização), ou pode-se buscar reinventar o conceito de mobilidade para além do automóvel na forma como ele é concebido hoje, provendo soluções que apresentem vantagens tecnossociais, econômicas e ambientais (revolução)” (Kleba, 2017: 175).
A terceira possibilidade, chamada de revolução tecnológica, é especialmente importante para o ENEDS e está em consonância com outras perspectivas, como tecnologia social (Dagnino, 2009), adequação sociotécnica (Dagnino et al., 2004) e democratização da tecnologia (Feenberg, 2019).
Para a realização da análise aqui proposta, o artigo está dividido em duas partes, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, busca-se compreender as condições que possibilitaram o desabrochar de tais formas alternativas de atuação da engenharia no Brasil a partir de três movimentos que contribuíram para a construção e expansão do campo EDS: a extensão universitária, a tecnologia social e a economia solidária. Na sequência, e de modo a caracterizar o campo ao longo do tempo, apresentaremos os ENEDS e os EREDS a partir da sua história e da análise de dados (anais, programação, etc.) de todas as suas edições. Apresenta-se também a Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá (REPOS), o último fruto do amadurecimento desse campo.
O caminho metodológico do artigo combina análise de documentos e revisão bibliográfica com pesquisa participante. Isso porque, além de os autores serem engenheiros, dois deles são também organizadores dos ENEDS e fundadores da Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá (REPOS).
Para compreender o ENEDS, é preciso retomar alguns eventos do passado recente do Brasil. Em 2003, é inaugurada uma sequência de governos do PT, com um claro projeto de ampliação do sistema universitário no país. Essa expansão foi acompanhada pelo crescimento e fortalecimento das atividades de extensão nas instituições de ensino superior (IES) (Fraga, 2012). Parcela significativa dessas atividades se conectou com dois movimentos também potencializados por políticas públicas do governo federal: a tecnologia social e a economia solidária. A seguir, abordaremos brevemente cada um desses movimentos, com intuito de buscar elementos para a compreensão do ENEDS.
Em um cenário de redemocratização do país que se seguiu ao fim da ditadura militar (1964-1985), as universidades brasileiras também reagiram à nova conjuntura. É nesse período que surgem o Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras (Forproex), o Programa de Extensão Universitária (PROEXT) e é aprovado o Plano Nacional de Extensão.1
É com o Proext que a extensão ganha dimensão de política pública em âmbito nacional. Diferentemente da prática durante o governo militar, nesse período, o financiamento para a extensão parte do enraizamento das atividades no entorno das IES e da descentralização das escolhas que envolvem a concepção e execução das atividades extensionistas. Como resultado dessas características, por um lado, há uma diversificação dos temas dos projetos. Por outro, o financiamento das atividades de extensão passa a estar diretamente conectado com a execução de políticas públicas do governo federal, como, por exemplo, a priorização do trabalho extensionista com beneficiários do Programa Bolsa Família (Fraga, 2012).
A partir de 2007, o governo federal lança o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), que inclui o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). Desse momento em diante, há um significativo aumento do volume de recursos para o Proext. Outra importante mudança na evolução do programa é a articulação com políticas públicas específicas de diversos ministérios. Segundo Lucas Maciel, o então coordenador da Coordenação Geral de Relações Estudantis (CGRE/MEC), houve uma relação entre a ampliação de parcerias no PROEXT:
“(...) os avanços que estão em curso na proposta do governo para a extensão, sobretudo o Programa de Extensão Universitária —PROEXT, podem ser divididos em dois grandes grupos: os de caráter econômico e os de ordem política. Enquanto o primeiro pode ser resumido como a ampliação exponencial dos recursos investidos na área, o segundo fica explicitado com a maior articulação de órgãos governamentais com a extensão” (Maciel, 2010: 18).
A Tabela 1 a seguir mostra a evolução dos recursos do Proext.

Observa-se um significativo aumento de recursos para o programa a partir de 2009. Trata-se, como salienta Maciel (2010), do resultado da articulação política, uma vez que, nesse ano, começam a ser lançados os editais em conjunto com outros ministérios. Além disso, destaca-se a evolução da média de recursos por proposta aceita, o que indica que houve aumento tanto do número de propostas quanto dos recursos disponibilizados para cada uma delas.
Pode-se afirmar que a extensão, nesse período, torna-se uma via para articular Estado e sociedade, através da mediação das IES (Fraga, 2012). É nesse contexto que o ENEDS surge, com a forte participação de estudantes universitários envolvidos em projetos de extensão em suas IES. Como veremos no decorrer do artigo, especialmente as entidades que organizam ou organizaram o ENEDS, como o Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC) da UFRJ, o Núcleo de Apoio às Atividades de Cultura e Extensão em Economia Solidária (NESOL) da USP e a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da Unicamp, entre outras, são grupos extensionistas que se formaram no início dos anos 2000.3
Outro movimento que marcou o país nas últimas duas décadas, tanto teoricamente quanto na busca por alternativas societárias, foi o da economia solidária. Ele surgiu no Brasil no início dos anos 1990, em um contexto de reestruturação do capitalismo nacional e seu consequente aumento nas taxas de desemprego.
O desemprego, no entanto, não era a única preocupação. A inflação exorbitante e a perplexidade diante da crise política instaurada pelos escândalos de corrupção pelos quais passava o país geraram uma onda nacional de mobilização. O Movimento pela Ética na Política, fruto dessa mobilização, deu origem à Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, lançado em março de 1993 e liderado pelo sociólogo Hebert de Souza, o Betinho. Em 1994, a Ação lança a campanha Natal Sem Fome, que arrecadou cerca de 600 toneladas de alimentos. No ano seguinte, diante da inexorável constatação de que apenas a doação de alimento não era suficiente, é iniciada outra campanha, a Ação pelo Emprego e o Desenvolvimento, com foco na geração de trabalho e renda (Vasconcelos, 2004). A articulação de diferentes atores no Fórum Social Mundial (FSM), a partir de 2001, dá corpo e unidade à economia solidária.
A economia solidária é formada por iniciativas econômicas coletivas (cooperativas, associações e grupos informais) que funcionam segundo os princípios da autogestão, cooperação e solidariedade. Sua origem, características e potencialidades são controversas. Por um lado, alguns atribuem seu surgimento a experiências ocorridas na Inglaterra, pouco depois da Revolução Industrial, a partir da atuação de Robert Owen, que propôs a criação de aldeias cooperativas, que seriam a primeira experiência de autogestão (Arroyo e Schuch, 2006). Por outro lado, autores como Nascimento (2004) afirmam que “a reinvenção da economia solidária porta em si uma espécie de ressurreição de valores que fazem parte da cultura do movimento operário: solidariedade, autogestão, autonomia, mutualismo, economia moral e outros” (Nascimento, 2004: 2). Esse autor afirma que a economia solidária seria uma onda de longa duração na longa história da classe operária, iniciando-se anteriormente à experiência inglesa.
No contexto de mobilização de diversos setores da sociedade diante das então recentes mudanças no mundo do trabalho e do ressurgimento da alternativa do trabalho coletivo e autogerido, é criada, em 2003, a Secretaria Nacional de Economia Solidária, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego. Nesse mesmo ano, é retomado o Programa Nacional de Incubadoras (Proninc), que tinha como um dos seus principais objetivos precisamente fomentar as ações de apoio às iniciativas de economia solidária a partir das instituições de ensino superior. Atrelado ao crescimento da extensão universitária, o programa também serviu como incentivo para a atuação de estudantes em grupos populares, como cooperativas de catadores, fábricas recuperadas pelos trabalhadores, assentamentos da reforma agrária etc.
No âmbito da engenharia, a junção da economia solidária com a extensão universitária trouxe à tona a questão da assessoria técnica aos grupos populares. Com isso, a atuação das áreas técnicas na extensão passa a ser incentivada. Dessa junção, emerge a tecnologia social, a que nos voltamos agora.
A ideia de construção de alternativas tecnológicas não é uma novidade na história. Sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, o tema emerge como questionamento da visão então dominante, e essencialmente positiva, do desenvolvimento científico e tecnológico (Sarewitz, 1996). Antes disso, um exemplo inspirador é a atuação de Mahatma Gandhi que, na década de 1920, encabeçou uma mobilização na Índia que visava à popularização da fiação manual e da roca tradicional, chamada Charkha (Dagnino et al., 2004: 5). Gandhi buscava, com isso, não apenas fazer frente ao controle britânico, como conscientizar política e socialmente seus concidadãos contra o domínio inglês e contra o sistema de castas, congregando-os na luta por uma vida melhor e mais justa para todos.
Estariam nessa atuação de Gandhi comprometida com a sorte dos mais pobres as raízes do movimento de tecnologia apropriada, que se desenvolve entre as décadas de 1940-1980 (Schumacher, 1983;Brandão, 2001; Dagnino et al., 2004;Thomas, 2009). O movimento quase que desaparece do mundo com a virada neoliberal dos anos 1980. Na esteira do seu ressurgimento, na segunda metade da década seguinte, a América Latina testemunhará, a partir dos anos 2000, a constituição da tecnologia social (Thomas, 2009), cujas causas imediatas locais variarão de país para país.
No caso do Brasil, no âmbito do governo federal, as gestões PT vão potencializar, mesmo que de maneira periférica dentro da estratégia de ciência e tecnologia para o país, a ideia de tecnologia para a inclusão social. Esta, com a criação da Secretaria Nacional de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social (SECIS), passará a ser chamada apenas de tecnologia social (TS). A TS, além disso, será tida como uma das quatro prioridades da Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação Tecnológica, no eixo de ciência, tecnologia e inovação para o desenvolvimento social.
Ainda que, do ponto de vista da política pública, essa ação fosse marginal, ela se somou a iniciativas preexistentes, como a da Rede de Tecnologia Social (RTS), do Instituto de Tecnologia Social (ITS), das ações da Fundação Banco do Brasil, com destaque para a criação do Prêmio e do Banco de Tecnologias Sociais. Ocorreu, em paralelo, uma crescente produção acadêmica sobre o tema.
No âmbito das políticas públicas, o principal conceito utilizado será aquele construído em negociação entre as diferentes entidades que compunham a RTS. Segundo esse entendimento, tecnologia social é o “conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida” (ITS, 2004: 26).
Em relação à TS como campo teórico, Renato Dagnino é uma das principais referências no país. O autor, preocupado com a fragilidade analítico-conceitual com que se tem abordado a questão do desenvolvimento de tecnologias alternativas à tecnologia convencional, define a tecnologia social como o:
“(...) resultado da ação de um coletivo de produtores sobre um processo de trabalho que, em função de um contexto socioeconômico (que engendra a propriedade coletiva dos meios de produção) e de um acordo social (que legitima o associativismo), os quais ensejam, no ambiente produtivo, um controle (autogestionário) e uma cooperação (de tipo voluntário e participativo), permite uma modificação no produto gerado passível de ser apropriada segundo a decisão do coletivo” (Dagnino, 2009: 97).
Esse conceito, de difícil compreensão quando isolado do texto no qual é elaborado, deixa transparecer uma preocupação do autor com os limites de se pensar a tecnologia social como experiências isoladas. O autor pressupõe a construção de alternativas tecnológicas necessariamente conectadas com alternativas societárias. Com isso, ele explicita as condições ideais para a existência da TS (ainda que, na prática, elas apenas muito raramente sejam verificadas), como a propriedade coletiva dos meios de produção e a autogestão. Além disso, estabelece a conexão entre TS e economia solidária, e corrobora a conexão que buscamos fazer entre extensão, economia solidária e tecnologia social.
Buscou-se, nesta primeira parte do artigo, apresentar os três elementos centrais do campo de engenharia e desenvolvimento social, conforme ele será conformado nos ENEDS e EREDS: a extensão universitária, a economia solidária e a tecnologia social. Esses movimentos contaram com o envolvimento popular, mas também tiveram forte ação do governo federal. Nos três casos, a participação de integrantes das instituições de ensino superior do país foi significativa. Com efeito, tendo como horizonte a construção de uma sociedade mais justa, pode-se afirmar que houve um duplo esforço de parcelas das IES brasileiras. Por um lado, o esforço teórico de analisar e aprofundar a compreensão sobre esses fenômenos. Por outro, o engajamento das IES na construção de alternativas para o país, seja por meio de política pública, seja por trabalho (extensionista) direto com grupos populares.
É nesse contexto que surgirão os grupos estudantis que organizarão os ENEDS/ EREDS e que, por tais influências, conformarão o campo EDS. Na próxima parte, e de modo a sustentar tanto a existência do campo e sua conformação, quanto a sua transformação ou amadurecimento ao longo dos anos, apresentaremos uma análise sobre a origem e a organização dos ENEDS/EREDS, bem como sobre suas programações, estruturações e os artigos neles apresentados.
No início de 2003, e a partir da mobilização de estudantes de engenharia da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), forma-se o Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec), voltado inicialmente para atuar “por meio de atitude solidária, desenvolvendo competências em políticas públicas para a geração de trabalho e renda e promoção de direitos humanos”.4
Em sua origem, o grupo tinha uma atuação próxima do campo de organizações não governamentais (ONG), da responsabilidade social e da inclusão social. De forma geral, o grupo era, então, um espaço no qual estudantes que tinham um incômodo com a vertente tecnocrática da engenharia podiam se juntar e experimentar uma atuação em contato direto com grupos marginalizados.
Como forma de ampliar esse debate sobre a possibilidade de a engenharia ter uma atuação comprometida com a inclusão social, o Soltec organizou, em 2004, o Encontro de Engenharia e Desenvolvimento Social (EEDS). Tratava-se ainda de um encontro voltado primordialmente para o público interno da UFRJ e no qual, como se verificará também nas edições seguintes do evento, os movimentos sociais estão ausentes. Não obstante, o evento contou pontualmente com a participação de pessoas de outras universidades do estado do Rio de Janeiro, além de IES de outros estados do país.
Refletindo essa visão inicial do SOLTEC, o EEDS — que veio posteriormente a ser chamado de primeiro ENEDS —, contava com uma programação diversa, envolvendo questões como desenvolvimento nacional, responsabilidade social, desenvolvimento local, economia solidária, participação e tecnologia social. O tema geral do encontro foi “Elaboração, monitoramento e avaliação de projetos solidários”, e um dos objetivos pretendidos com ele era “propiciar o intercâmbio entre as experiências de projetos de engenharia em programas de geração de emprego e renda e na promoção dos direitos humanos”.6
Do segundo ao quarto ENEDS (2005, 2006 e 2007), o evento continuou sendo organizado pelo Soltec na cidade do Rio de Janeiro. A cada nova edição, aumentava a participação de pessoas de outros estados, principalmente de São Paulo. Isso se deveu, sobretudo, ao estreitamento do diálogo do Soltec com outros dois núcleos de extensão tecnológica: a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Núcleo de Economia Solidária (NESOL) da Universidade de São Paulo (USP). Em função da progressiva participação de mais incubadoras e núcleos de extensão com atuação na economia solidária, houve um direcionamento, nos ENEDS, para discussões e trocas em torno a este tema, assim como ao de TS e ao da extensão, que eram particularmente caros para esses atores.
Com isso, já nas primeiras edições do ENEDS, o espaço se articulou em torno a essas três perspectivas, o que fez com que outros núcleos de extensão do país passassem a enxergar no encontro um lugar privilegiado para o debate e a construção de sua própria atuação, constituindo-se, desse modo, um ciclo de realimentação positiva.
Como uma das consequências dessa conjunção, o número de inscritos nas edições anuais do evento saltou de 150, em 2004, para 300, apenas dois anos depois, chegando a mais de 1500, no ano de 2015. Ao longo das suas catorze primeiras edições (2004-2017), o encontro contou com a participação de mais de nove mil pessoas.
A estrutura do ENEDS, em todas as edições, incorporou múltiplos espaços de trocas e discussões — mesas redondas, palestras, oficinas e afins —, assim como sessões de apresentação de artigos acadêmicos. Isso, que em boa medida reflete o modus operandi próprio do meio acadêmico, ao qual a extensão universitária segue associada, teve papel fundamental para a constituição de um corpo de saber que possibilitasse a consolidação e atuação das iniciativas envolvidas. Para se ter uma ideia disso, entre 2004 e 2015, por exemplo, 392 artigos foram apresentados nos ENEDS (analisaremos essas produções mais à frente).
Ao mesmo tempo, porém, em que foi se configurando como espaço de produção de conhecimento e troca de experiência, o ENEDS, desde a sua primeira edição, teve um claro objetivo de formação e, principalmente, sensibilização de estudantes eventualmente interessados pelo tema, mas com pouca ou nenhuma formação ou vinculação afetiva e efetiva com ele. Nesse sentido, para muitos dos estudantes que dele participaram, o encontro, além de operar como porta de entrada e processo inicial de vinculação teórico-prática ao ideário EDS, funcionou como um espaço de acolhimento, de cuidado e de refúgio (em relação ao ambiente muitas vezes opressor dos cursos de engenharia).
Tais características são parcialmente explicadas pelo fato de a equipe de organização do encontro ser composta sempre por estudantes da instituição sede, muitas vezes sem a presença efetiva de um docente nessa comissão. Frequentemente, a equipe organizadora é constituída por pessoas que, além de já terem participado de ao menos um ENEDS (requisito obrigatório para ao menos parte desse grupo), são apenas interessadas nas temáticas relativas à engenharia e desenvolvimento social, não tendo atuação nela. Por isso, elas precisam encontrar meios de se formarem nessas temáticas, de modo a, dentre outras coisas, poderem definir o tema do encontro e a programação do mesmo. Tal coisa é conseguida por meio de grupos de estudo formados pelos próprios estudantes da equipe local, com o suporte, quando necessário, daquilo que veio a ser chamado de comissão nacional (sobre a qual se falará melhor mais à frente).
No ENEDS de 2007, decidiu-se que a edição seguinte do evento ocorreria em São Paulo, sendo organizada pela Poli Cidadã da USP, em parceria com outros grupos que atuavam com extensão na engenharia (NESOL/USP e ITCP/Unicamp). Com isso, a partir de 2008, o ENEDS passou a ser itinerante e, durante a realização de cada edição, a equipe organizadora local (ou simplesmente comissão local) buscava dialogar com grupos de estudantes de outros estados, para ver quais desejariam e teriam capacidade de promover o encontro no ano seguinte. A ideia, com isso, era levar o evento — com suas bandeiras — para outras instituições e regiões do país, de modo a ampliar a difusão e a adesão às pautas EDS nele desenvolvidas. A partir do ENEDS de 2011, foi institucionalizada a realização de uma plenária final em cada encontro, que tinha como finalidade, dentre outras coisas, decidir o local da edição seguinte do evento.
Desse momento em diante, também porque o Soltec e sua equipe passaram a assumir um papel mais coadjuvante, sentiu-se a necessidade de se constituir um grupo de referência, formado principalmente por organizadores das edições anteriores do evento, e que foi chamado de comissão nacional (CN). Inicialmente, a principal atribuição desse grupo foi prover suporte às comissões locais, no processo de formação e de organização do evento. As comissões locais, contudo, seguiram soberanas em seu percurso, de modo que, via de regra, a CN operou como instância de apoio apenas quando isso foi solicitado. Tal opção buscava empoderar os grupos locais e instituir uma colegialidade voluntária entre os envolvidos, bandeiras que ganhavam força na própria prática extensionista e no ideal de mundo de vários dos participantes mais assíduos dos encontros e da CN.
Em 2011, surgiram as versões regionais do encontro, os EREDS (Encontro Regional de Engenharia e Desenvolvimento Social). Sua intenção era e é, por um lado, levar a sensibilização pelo tema da engenharia e desenvolvimento social a mais pessoas e a regiões geograficamente mais distantes do país, uma vez que os ENEDS sempre acontecerão em locais proibitivamente distantes (e de acesso, por isso, caro) para muitos, dadas as dimensões continentais do Brasil. Por outro lado, os encontros regionais operam tanto como sensibilização para participação da edição nacional, quanto como uma espécie de oficina para que os estudantes da instituição sede se encorajem a organizar o evento nacional no futuro.
Entre 2011 a 2018, ocorreram vinte e três EREDS, sendo sete na região Sudeste, seis na Nordeste, cinco na Sul, quatro na Norte e um no Centro-Oeste. O total de participantes em todas as edições foi de mais de 5000 pessoas. Os EREDS não costumam ter chamada de artigos, nem a produção de anais.
Na tabela a seguir, são compiladas as informações concernentes à cidade e à universidade sede, ao número de artigos aceitos para apresentação e ao tema geral escolhido, pela comissão local, para o encontro.

Ao longo dos catorze primeiros anos de ENEDS (2004-2017), algumas questões relativas à organização do encontro foram sendo consolidadas e, no geral, observadas nas edições subsequentes, seja pela participação das comissões locais no(s) ENEDS anterior(es) àquele(s) que ela organizou, seja pelo suporte da comissão nacional. Uma delas foi relacionada à composição das mesas de debate, que deveriam ser constituídas por ao menos três pessoas: uma que proveria o contexto geral do problema; outra que estaria mais concernida com as questões concretas da engenharia; e uma terceira que fosse integrante de movimento social ou grupo popular vinculado à problemática em discussão. Objetivava-se, com isso, assegurar ao menos o direito de fala a três dos principais atores de um desenvolvimento social popular ou emancipador, de modo que cada qual pudesse dizer do problema a partir do local que ocupa na relação com ele: o teórico e/ou o poder público; o técnico implementador; e o usuário ou operador popular.
Passa a existir um cuidado, assim, para que os grupos populares sejam sempre apresentados em primeira pessoa, conferindo, de forma explícita, protagonismo a eles não apenas na prática extensionista dos/as engenheiros/as identificados/as com o, ou pertencentes ao, campo EDS, mas também nas discussões e reflexões sobre essa prática e sobre o futuro sociotécnico que se busca com ela.
Além disso, e de modo a que o público participante da atividade pudesse não apenas tirar dúvidas, como trazer outras perspectivas e contribuições à discussão em curso, a tendência que acabou se consolidando foi a de, independentemente do número de participantes da mesa, garantir-se igual tempo a que seus membros, em conjunto, tiveram para expor seus pontos, para que o público pudesse fazer o mesmo. A ideia, com isso, era romper uma possível assimetria, injustificável, entre especialistas, de um lado e com direito a fala, e leigos, de outro e calados. E isso, também aqui, refletia a prática extensionista e o ideal de mundo de vários dos participantes mais assíduos dos encontros e da comissão nacional.
Uma terceira transformação, ocorrida em 2012, foi a de se buscar sempre equidade de gênero nas mesas do evento. Essa decisão, que em si talvez devesse parecer óbvia já naquela época, adveio como encaminhamento para uma provocação levantada por uma palestrante (e uma das autoras deste artigo) do ENEDS anterior, que dava conta de ter sido ela a única mulher palestrante das mesas daquela edição. Nessa mesma linha de sensibilizações, questões similares foram posteriormente levantadas, como a representatividade, nas atividades do encontro, de negros e LGBT.
Uma característica importante desses encontros, e que sempre foi observada, é o fato de eles terem sido sempre gratuitos, sendo asseguradas adicionalmente alimentação e estadia gratuitas (ou a baixo custo). Com isso, busca-se garantir condições favoráveis à participação de todos que o queiram. Para financiar esses e os outros custos do evento, a orientação que se consolidou foi a de se buscar apenas financiamento público ou de entidades que partilhem em alguma medida do ideário EDS, não se aceitando recursos de empresas privadas, de modo a não se perder, com isso, autonomia na crítica à atuação das mesmas.7
De modo a provermos mais elementos que nos ajudem a caracterizar e a perceber a evolução do ENEDS, vamos nos valer, agora, de informações provindas de três fontes principais: uma compilação dos dados dos 392 artigos apresentados nas doze primeiras edições do evento (2003-2015) (Alvear et al., 2017); uma compilação da programação dos catorze encontros já realizados; e a lista dos inscritos em cada um desses ENEDS.8910
Uma primeira informação relevante para caracterizarmos o ENEDS é aquela que diz respeito aos referenciais teóricos dos artigos apresentados e das atividades propostas em cada edição dele. No que concerne aos artigos, tais dados podem ser obtidos a partir de três elementos diferentes: autores mais frequentemente citados; palavraschave utilizadas; e questões primárias, secundárias e terciárias de cada trabalho.11
No que diz respeito aos autores mais referenciados, o gráfico abaixo fornece a lista dos oito primeiros: Paul Singer, Paulo Freire, Michel Thiollent, Luís Inácio Gaiger, Boaventura de Sousa Santos, Renato Dagnino, Antônio Carlos Gil e Karl Marx. Para facilitar a visualização, os trabalhos estão agrupados de três em três anos. O valor numérico se refere ao percentual de artigos, naquele triênio, que cita ao menos uma vez o respectivo autor em sua bibliografia.

Além desses oito autores, apenas outros 18 aparecem, no conjunto dos 392 artigos, nas referências bibliográficas de ao menos dez deles (ou 0,025% do total): Ricardo Antunes, Farid Eid, Euclides Mance, Ignacy Sachs, André Ricardo de Souza, Antônio David Cattani, Flávio Henriques, Sidney Lianza, Edgard Morin, Robert Yin, Genauto de França Filho, José Francisco de Melo Neto, Marcio Pochmann, Sandra Rufino, Pierre Bourdieu, Ruth Mello, Milton Santos e Nigel Slack.
Os principais autores citados podem, todos eles, ser de algum modo agrupados em torno das três forças apresentadas anteriormente. Sobre economia solidária, as referências são Paul Singer, Luís Inácio Gaiger, Euclides Mance, André Ricardo de Sousa, Antônio David Cattani e Genauto de França Filho. Sobre a temática da extensão, Paulo Freire, Michel Thiollent e José Francisco de Melo Neto. Sobre tecnologia social, Renato Dagnino e Ignacy Sachs. Autores como Sidney Lianza, Farid Eid, Flávio Henriques e Sandra Rufino são figuras que fazem parte da mobilização e organização do ENEDS e abordam os três temas de maneira interconectada. Já Boaventura de Sousa Santos, Karl Marx, Ricardo Antunes, Pierre Bourdieu e Edgard Morin apontam para uma crítica contextualizadora anticapitalista, que é fundante e fundamental para as três linhas anteriores.
Para as palavras-chave, procedeu-se como apresentado em Alvear et al. (2017). Com isso, os termos ou expressões mais recorrentes são: “Economia Solidária”, que aparece em 22% dos artigos; “Extensão”, em 9%; “Autogestão”, em 7%; e “Políticas Públicas”, em 6%. Agrupando termos com boa proximidade teórica, mas não exatamente idênticos, teríamos “Cooperativismo” aparecendo em 10% dos artigos e “Desenvolvimento Social”, em 9%. Além desses termos ou expressões, outros que aparecem com frequência significativa são: “Educação”, “Sustentabilidade”, “Tecnologia Social”, “Engenharia”, “Agricultura Familiar”, “Pesquisa-Ação”, “MeioAmbiente”, “Responsabilidade Social”, “Trabalho” e “Universidade”.
Quanto ao tema de cada artigo, quando se considera exclusivamente a questão primária, tem-se a seguinte distribuição dos sete mais recorrentes (e que comprazem 207 artigos, ou seja, 53% do total):

Se considerarmos as questões primárias, secundárias e terciárias em conjunto, a distribuição percentual dos temas é aquela mostrada à direita no gráfico abaixo, para o qual os valores à esquerda constituem a percentagem dos mesmos temas, quando se consideram apenas as questões primárias:

No que concerne à programação dos eventos, temos a seguinte distribuição de temas para as mesas redondas (2004-2015):

Nota-se, assim, uma clara predominância, nas publicações apresentadas nos ENEDS e nas atividades desenvolvidas ao longo de cada edição do encontro, de autores, ideias/palavras-chave e/ou temáticas relacionadas ou aplicáveis à problemática de extensão, economia solidária e/ou tecnologia social. Merece destaque também o tema da formação em engenharia, que é bastante recorrente nos eventos e nas preocupações dos estudantes da área.
Não obstante, não é difícil perceber que as temáticas mais recorrentes na programação não seguem a mesma ordem daquelas dos artigos. Em parte, o que os dados e a percepção dos autores parecem indicar é que, no que diz respeito aos artigos, o ENEDS se oferece como um dos espaços por excelência, no Brasil, para que as múltiplas formas de engenharia engajada possam ser veiculadas. Com isso, não apenas os aspectos centrais colocados neste artigo são tematizados, como também, ao lado deles, outras abordagens e iniciativas.
A programação, por seu turno, é construção das comissões locais, em uma interação próxima com a tradição dos eventos (na figura da comissão nacional, quando convocada a assessorá-las, ou da adesão dos seus membros a esses valores através, por exemplo, da participação em outras edições do encontro). Com isso, a programação tende a representar o acúmulo e consolidação do evento — e, com isso, do campo EDS —, bem como as apostas ou fragilidades que, em função disso, buscam-se avançar ou superar. Nesses termos, ainda que os ENEDS e EREDS estejam intrinsecamente ligados à formação e consolidação do campo EDS no Brasil, eles se oferecem, ao mesmo tempo, como espaços plurais, abertos também para outras iniciativas da engenharia engajada.
Uma das questões que chamou atenção na análise do ENEDS foi o fato de ele ser centrado em temáticas urbanas, mesmo considerando que, no campo da extensão, a reflexão sobre a extensão rural é bastante consolidada no país. Com efeito, apenas cerca de 14% dos trabalhos apresentados nos doze primeiros anos do evento tratam explicitamente da questão agrária. Nas atividades da programação do encontro, apenas 9% têm como central essa temática, sendo que a maioria delas foi proposta nas sedes mais rurais do evento (Campinas/SP, Teófilo Otoni/MG e Itajubá/MG).
Hipóteses para explicar essa discrepância entre urbano e rural são fundamentalmente três. Quanto à participação dos estudantes, as universidades brasileiras têm, em média, proporcionalmente muito mais cursos e mais vagas para as carreiras urbanas (que representam a maior parte do mercado de trabalho). Além disso, a maioria das universidades que organizaram o evento têm perfil claramente urbano, com proporcionalmente poucos cursos das carreiras rurais. Ao mesmo tempo, e como explicação também para a sub-representação no âmbito dos trabalhos apresentados, existem outros fóruns, mais antigos e consolidados, de sensibilização, trocas e formação para a questão agrária do que o ENEDS (Fraga, 2012). Seja como for, uma aproximação dessas duas vertentes — agrária e urbana — é potencialmente promissora.
Uma primeira informação relevante para caracterizarmos o ENEDS é aquela que diz respeito aos referenciais teóricos dos artigos apresentados e das atividades propostas em cada edição dele. No que concerne aos artigos, tais dados podem ser obtidos a partir de três elementos diferentes: autores mais frequentemente citados; palavraschave utilizadas; e questões primárias, secundárias e terciárias de cada trabalho.11
Com a organização compartilhada e profundamente reflexiva do ENEDS ao longo dos anos, buscou-se o amadurecimento da atuação do coletivo que se formou na comissão nacional. Nesse caminho, diversas reflexões foram feitas. A primeira teve como disparador uma mesa que contou com a participação de diversos movimentos sociais na comemoração de dez anos do ENEDS (2013). Nela, tornaram-se evidentes tanto a progressiva aproximação do ENEDS com respeito às organizações desses movimentos, quanto, por conta também disso, uma associação de diversos dos seus participantes com as pautas e os projetos sociotécnicos de tais grupos: a da Reforma Agrária Popular, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); a do Projeto Energético Popular, do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) (Fraga, 2016); etc.
Por outro lado, ao longo dos ENEDS, algumas questões surgiram da parte de muitos que se aproximavam, pela primeira vez e por meio dele, da temática do desenvolvimento social. Para esses participantes, em geral não ligados a qualquer trabalho de extensão, o ENEDS era um espaço de sensibilização, que apresentava várias possibilidades de atuação junto a movimentos sociais ou grupos populares, mas que não provia os meios para dar prosseguimento a isso. O encontro era muitas vezes experimentado como um momento de euforia, mas que era insuficiente para ajudar seus participantes a atuarem com o tema, uma vez que as universidades de origem de muitos deles não contavam com docente ou núcleo de extensão que o encarnasse ou desenvolvesse.
Da confluência desses dois conjuntos distintos de demandas, em 2014, no ENEDS de Castanhal/PA, a comissão nacional decidiu levar a questão da constituição de uma rede de engenharia popular para a deliberação da assembleia final, que a aprovou. Criava-se, nesse momento, a Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá (REPOS). Ficou decidido, além disso, que o foco de atuação dessa rede seria fortalecer a relação com os movimentos sociais, grupos populares e trabalhadores/as organizados/as. De 2014 para cá, ocorreram diversas reuniões virtuais e dois encontros presenciais da REPOS. A partir desses debates, construiu-se o site da rede e se definiram seus princípios e valores:
“A REPOS se encontra em construção e tem como um dos seus elementos centrais a ação, pois consideramos que a prática e a reflexão, a partir do concreto/material, fazem a organização. Buscamos, com isso, reconhecer e valorizar as particularidades locais, sem perder as dimensões globais que nos unem em uma luta maior, contextualizadas pelos princípios de:
(i) Educação Popular;
(ii) Autogestão;
(iii) Justiça social e ambiental;
(iv) Feminismo, antiracismo e contra LGBTfobia;
(v) Cuidado com a vida;
(vi) Valorização da cultura em sua diversidade;
(vii) Reconhecimento e diálogo entre os diversos saberes (populares, tradicionais, acadêmicos, das diferentes disciplinas)” (REPOS, 2017).
Além disso, seus objetivos são:
“(...) articular a engenharia para dialogar com as lutas dos movimentos sociais, grupos populares e trabalhadores/as organizados/as. Dessa forma, partindo de nossos princípios, pretendemos auxiliar esses movimentos no desenvolvimento e readequação de processos e tecnologias de produção e comunicação, a partir do conhecimento da engenharia, contextualizado com as questões sociais, políticas, culturais, ambientais e econômicas específicas de suas realidades.
(...) Assim, para que as tecnologias possam caminhar junto com a luta desses movimentos, elas devem ser concebidas a partir dos valores, crenças, expressões culturais, formas de organização e cultura política desses movimentos, sempre com o cuidado à vida e respeito ao meio ambiente” (REPOS, 2017).
Atualmente, a REPOS caminha no sentido de criar materiais de divulgação sobre a engenharia popular; criar espaços para formação de estudantes de engenharia que queiram atuar com movimentos sociais, grupos populares e trabalhadores organizados; e refletir sobre as grades de cursos de engenharia no país, de modo a ter elementos para aproximar currículos tradicionais de uma perspectiva popular e solidária.
Conforme visto, os ENEDS/EREDS podem ser considerados como espaços que serviram para atrair estudantes de engenharia, fornecendo um local de acolhimento para diferentes práticas e perspectivas teóricas contra-hegemônicas na engenharia. Além disso, como mostram os próprios anais e a programação do evento, o modelo de desenvolvimento social que se apresenta majoritariamente nesses espaços é aquele baseado na economia solidária.
É inegável, adicionalmente, que esses eventos se caracterizam de forma clara também como um local de encontro de experiências extensionistas da engenharia, tendo como característica central a descentralização e a diversidade. Uma das provas dessas duas características é o fato de o encontro não ter se preocupado em definir formalmente o que seria a “engenharia voltada para o desenvolvimento social”.
A partir da análise dos anais do ENEDS e de suas programações, entretanto, poderíamos propor para tal perspectiva de engenharia a seguinte definição: “uma atuação que, através da extensão universitária, propicia processos de desenvolvimento de tecnologia social em conjunto com empreendimentos solidários, tendo como fundamento metodologias participativas, e que busca identificar elementos que caracterizariam uma outra engenharia possível”.
Assim, consideramos que emerge alguma unidade no ENEDS, decorrente do conjunto de experiências compartilhadas nele. Diante desse conjunto, a comissão nacional/REPOS tem o importante papel de buscar refletir sobre aquilo que aproxima as diferentes experiências, suscitando debates sobre temas e abordagens que se mostrarem prioritários (seja por serem recorrentes, seja por estarem injustificadamente ausentes).
Como decorrência desse caminho trilhado, a REPOS/CN pode ser vista como um coletivo que busca propor com mais clareza o que é esse campo de práticas que surge, consolida-se e se transforma por intermédio do ENEDS. Essa aposta de definição (e, portanto, de recorte) pode potencializar uma atuação mais focada, mas, ao mesmo tempo, pode não ser tão atrativa para os novos engenheiros que buscam outro tipo de atuação alternativa.
A partir da proposta da REPOS em seu site, poderíamos demarcar a engenharia popular a partir da particularização da definição de engenharia e desenvolvimento social.13 Com isso, a engenharia popular seria aquela que “propiciaria processos de desenvolvimento de tecnologia social em conjunto com grupos populares e movimentos sociais, tendo como fundamento a autogestão, a educação popular e metodologias participativas como a pesquisa-ação, buscando identificar novos elementos para definir uma nova engenharia possível”.
Assim, são prova de que o campo de engenharia e desenvolvimento social surge e se fortalece no Brasil, em torno ou por meio dos ENEDS/EREDS, não apenas o trabalho de inúmeros núcleos de extensão que, articulados em torno desses encontros, consolidaram suas identidades, aprimoraram seus instrumentos de atuação e produziram conhecimento para subsidiá-la. Para além disso, o surgimento da REPOS — e, de forma primordial, as pressões para que isso acontecesse —, além de três seções especiais sobre o tema da Revista Tecnologia e Sociedade, dizem não apenas de um passado que se consolidou, mas também de um futuro que se tem buscado construir.
A mudança de perspectiva do ENEDS, cujo fruto mais recente é a criação da REPOS, talvez seja a principal potência do campo. De fato, na aproximação com os movimentos sociais, grupos populares e trabalhadores organizados, abandonando um desenvolvimento, ainda que social, sem sujeitos concretos e valores explicitamente conectados com as classes populares, parece residir a continuidade mais radicalmente interessante do ENEDS e da atuação da REPOS.
Em sua consolidação popular, um dos principais méritos do ENEDS/REPOS parece ser o de apresentar como horizonte — como o inédito viável do qual falava Paulo Freire, ou como espaço de experimentação da esperança — a construção de alternativas sociotécnicas, em um outro mundo possível. Algum acúmulo e estrutura para isso, o campo EDS tem. Se ele, porém, logrará sobreviver aos ataques que está sofrendo (a partir do impeachment de Dilma Rousseff) e que sofrerá, e se, sobrevivendo, conseguirá de fato seguir aprofundando a sua associação e o seu serviço às classes populares, apoiando-as em seu processo de libertação, isso só o tempo mostrará.





