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DO LIVRO PARA O PALCO E VICE-VERSA: SOBRE UMA TRADUÇÃO BRASILEIRA DE IWONA, KSIĘŻNICZKA BURGUNDA (IVONE, PRINCESA DA BORGONHA), DE WITOLD GOMBROWICZ
Marcelo Paiva de Souza
Marcelo Paiva de Souza
DO LIVRO PARA O PALCO E VICE-VERSA: SOBRE UMA TRADUÇÃO BRASILEIRA DE IWONA, KSIĘŻNICZKA BURGUNDA (IVONE, PRINCESA DA BORGONHA), DE WITOLD GOMBROWICZ
Cadernos de Tradução, vol. 43, núm. 1, Esp., pp. 66-95, 2023
Universidade Federal de Santa Catarina
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Resumo: Em vista do projeto de publicação em livro da minha tradução de Iwona, księżniczka Burgunda (Ivone, princesa da Borgonha), de Witold Gombrowicz – feita sob encomenda para a primeira montagem brasileira da peça, em 2003 –, revisito a empreitada e reexamino o processo tradutório, suas motivações e premissas, seus problemas e resultados. Redirecionada do espaço do palco para o âmbito das letras, confrontada com um novo momento da trajetória de recepção de Gombrowicz em nosso país, a tradução realizada anos atrás dá ensejo a uma série de questionamentos: as diretrizes do trabalho tradutório (ainda) se mostram acertadas? Suas soluções – textuais e paratextuais – (ainda) parecem satisfatórias? Em que medida? Por quê?

Palavras-chave: Iwona, księżniczka Burgunda (Ivone, princesa da Borgonha), entre o palco e o livro, traduzir (para o) teatro, gombrowicz no Brasil.

Abstract: In view of the publishing project of my translation of Iwona, księżniczka Burgunda (Ivone, Princess of Burgundy), by Witold Gombrowicz – made for the first Brazilian staging of the play, in 2003 –, I revisit my undertaking and re-examine the translation process, its motivations and premises, its problems and results. Redirected from the space of the stage to the domain of literature, confronted with a new moment in the reception of Gombrowicz in our country, the translation carried out years ago gives rise to a series of questions: do the guidelines of the translation work (still) prove to be adequate? Do the solutions adopted, concerning text and paratexts, (still) seem satisfactory? How so?

Keywords: Iwona, księżniczka Burgunda (Ivone, princesa da Borgonha), between the stage and the book, theatre translation, gombrowicz in Brazil.

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DO LIVRO PARA O PALCO E VICE-VERSA: SOBRE UMA TRADUÇÃO BRASILEIRA DE IWONA, KSIĘŻNICZKA BURGUNDA (IVONE, PRINCESA DA BORGONHA), DE WITOLD GOMBROWICZ

Marcelo Paiva de Souza
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Cadernos de Tradução, vol. 43, núm. 1, Esp., pp. 66-95, 2023
Universidade Federal de Santa Catarina

Recepção: 11 Setembro 2022

Aprovação: 17 Janeiro 2022

Publicado: 01 Março 2023

Introdução

No breve “Comentário” que serve de pórtico a sua Operetka (Opereta), Witold Gombrowicz (1904-1969)1 suscita questões de muito interesse para tradutores de teatro e estudiosos dessa multifacetada prática tradutória. Sigamos por um momento o fio de suas instigantes ponderações:

Sempre tive fascínio pela forma da opereta, na minha opinião, uma das mais felizes já criadas no teatro. Enquanto a ópera é algo arrastado, desesperadoramente entregue à pretensão, a opereta, em seu divino idiotismo, sua celeste esclerose, em suas asas magníficas de canto, dança, gesto, máscara, é para mim um teatro perfeito, perfeitamente teatral.

(Gombrowicz, 2012a, p. 257)2

Mas se o autor polonês se confessa um entusiasta da “santa tolice” (2012a, p. 258) da opereta, a mera observância das convenções do gênero está de todo fora de cogitação para ele. Trata-se, isto sim, de pôr em jogo essas convenções, um jogo de viés decididamente crítico e sofisticadamente transgressivo.3 Gombrowicz quer “rechear as vazias marionetes da opereta”, essa “forma tão leviana” (2012a, p. 257), de máxima densidade dramática, “de seriedade e dor. Por um lado, portanto, [Operetka] deveria ser, do início ao fim, apenas uma opereta, intocável e soberana” (2012a, p. 257) em seus componentes típicos; sendo, porém, ao mesmo tempo, por outro lado, o “drama patético” (ibid.) dos homens arremessados no “torvelinho da História” (2012a, p. 262).

Desse esforço de conjunção de contrários, que Gombrowicz entende como um eterno trabalho do artista, dessa insólita fusão dramatúrgica do ligeiro e do grave, resulta um notável desafio para os palcos: “O monumental idiotismo da opereta, de mãos dadas com o pathos monumental da existência histórica – a máscara da opereta, por trás da qual sangra, com uma dor ridícula, o rosto contorcido da humanidade – essa seria talvez a melhor encenação de Operetka no teatro” (2012a, p. 258). E também, acrescenta Gombrowicz, “na imaginação do leitor” (2012a, p. 258).

Chegamos aqui ao ponto crucial para as reflexões que desenvolverei no presente artigo. Como se percebe, está claramente delineado na visada do escritor um duplo horizonte. Embora convicto de que “O texto da peça teatral moderna” é “cada vez mais [...] uma partitura, que só começa a viver em cena, na atuação, no espetáculo”4 (2012a, p. 257), nem por isso Gombrowicz deixa de ter em alta conta a cena da leitura, o palco imaginado por cada leitor que dará vida literária a Operetka. É bem sabido que o estatuto bivalente do texto dramático, sua complexa interface entre as páginas e as ribaltas, tem feito correr rios de tinta teórica em diversos campos de conhecimento, desde os estudos teatrais e literários, até os estudos da tradução.5 Nesta oportunidade, pretendo me ocupar do assunto de um ângulo bastante específico, definido, sobretudo, por minha experiência como tradutor.

Vinte anos atrás, diante da encomenda de tradução de uma das obras da dramaturgia gombrowicziana – Iwona, księżniczka Burgunda (Ivone, princesa da Borgonha) –, não hesitei quanto ao pressuposto básico da empreitada. A exemplo do próprio autor em seu “Comentário” sobre Operetka, abordei o texto de Iwona enfatizando seu nexo constitutivo entre literatura e teatro, entre os signos da escrita e a signagem cênica. Em decorrência disso, minha estratégia tradutória se propôs atenta tanto aos valores literários da peça, quanto à sua efetividade teatral, sua plasticidade e potência como matéria-prima para a construção de um espetáculo.6 E naquela altura, a demanda imediata a atender provinha justamente da cena: o texto traduzido se destinaria à primeira montagem brasileira da obra. Diante de outra demanda, hoje – o projeto de publicação da tradução em livro –, tenho o grato ensejo de revisitar minha Ivone, de reexaminar seu processo de elaboração, seus problemas e seus resultados. Redirecionada do espaço do palco para o âmbito das letras, confrontada com um novo momento da trajetória de recepção de Gombrowicz em nosso país, como essa Ivone brasileira se sai? As diretrizes do trabalho tradutório (ainda) se mostram acertadas? Suas soluções – textuais e paratextuais – (ainda) parecem satisfatórias?

No rastro dessas perguntas, o percurso adiante vai se desenrolar em três movimentos. Primeiro, entram em discussão os contextos mais amplos em que se inseriu minha tradução de Iwona, księżniczka Burgunda: a fortuna e os infortúnios da produção literária de Witold Gombrowicz em sua recepção no Brasil e a circulação das peças do autor pelo mundo via tradução/encenação. Em seguida, o foco incide em Ivone, princesa da Borgonha: destaco e discuto alguns aspectos-chave da minha tradução, trazendo à baila para cotejo duas outras versões da peça (para o francês e para o espanhol).

Uma presença inconspícua7

Pode ser que me engane, mas carrego a teimosa impressão de que a sorte dos escritos gombrowiczianos em solo brasileiro tem deixado a desejar.8 Não cabe aqui sequer uma rápida tentativa de enfrentamento do espinhoso e delicado problema da qualidade das traduções a nossa disposição.9 Ficando apenas no levantamento quantitativo, todavia, já saltam aos olhos dados inquietantes. O roteiro das iniciativas tradutórias tem sido acidentado e resta um vultoso déficit translacional a suprir, para que o corpus das obras de Gombrowicz tenha presença mais inteira e conspícua no Brasil.

Grosso modo, o processo de incorporação do autor ao patrimônio literário nacional via tradução pode ser dividido até aqui em duas etapas principais. A primeira, iniciada em fins da década de 1960, é constituída por empreitadas de apropriação indireta dos seus textos, tributárias de versões estrangeiras anteriores. A coletânea de contos Bakakai é seu primeiro livro publicado no país, em tradução de Álvaro Cabral, a partir da versão francesa da obra (Gombrowicz, 1968). A seguir, ainda na primeira onda de assimilação local do escritor polonês, a mesma editora que deu a lume Bakakai, a Expressão e Cultura, do Rio de Janeiro, publica o romance A pornografia, também vertido a partir do francês, por Flávio Moreira da Costa (Gombrowicz, 1970). Já em meados da década de 1980, por fim, o lançamento pela editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, de uma nova edição de A pornografia (Gombrowicz, 1986), traduzida por Tati de Moraes – novamente a partir do francês, porém revista por Yan Michalski à luz do original polonês –, prenuncia de certa forma o momento de transição para uma nova etapa da fortuna tradutória gombrowicziana em nossa cultura literária.

Por si só, tal quadro quiçá não oferecesse motivo de maior alarme. No entanto, a situação dele decorrente foi sintetizada por um especialista nos seguintes termos: “Gombrowicz es prácticamente desconocido en el Brasil y el par de libros que del mismo llegaron a editarse durante finales de la década del ’60 (sus cuentos y A pornografia) parecen haberse sumido en el más incomprensible silencio” (Gasparini, 2007, p. 16). Repare-se que a desapontada observação é feita por um estudioso argentino da obra gombrowicziana, o que chama atenção para um outro aspecto do problema em exame: em contraste com o sonoro cacife que o nome de Gombrowicz detém nas letras da Argentina, ganha contornos ainda mais nítidos, e ainda mais lastimáveis, a escassa notoriedade do autor polonês no mundo letrado brasileiro. E a flagrante diferença de status do escritor em um e outro dos dois países vizinhos decerto não se explica apenas em razão do longo exílio portenho de Gombro.

Passou-se uma década e meia desde que Pablo Gasparini publicou El exilio procaz: Gombrowicz por la Argentina, estudo em cuja introdução se leem as palavras citadas há pouco. E por um curioso, feliz acaso, no mesmo período em que o livro foi dado à estampa,10 estava em marcha uma iniciativa de capital relevância para a fortuna tradutória e a recepção de Gombrowicz no Brasil. Seus escritos tornavam então a entrar em expressiva circulação entre nós, dessa vez, enfim, em traduções diretas do respectivo original. Abria-se, desse modo, uma nova etapa da sobrevida brasileira do autor polonês. Em meados dos anos 2000 veio a lume, sob o prestigioso selo editorial da Companhia das Letras, o romance Ferdydurke, vertido para a língua portuguesa pelo prolífico tradutor Tomasz Barciński (Gombrowicz, 2006). Seguem-se a esse título, em curto intervalo de tempo, outros dois, lançados pela mesma editora: os romances Cosmos, em tradução de Tomasz Barciński e Carlos Alexandre Sá (Gombrowicz, 2007), e Pornografia, em tradução de Tomasz Barciński (Gombrowicz, 2009). Acrescido a tanto, um pouco mais tarde, o lançamento de um ensaio, o Curso de filosofia em seis horas e quinze minutos, pela José Olympio, em tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca (Gombrowicz, 2011),11 caberia crer que os dados apontados são unívocos e obrigam a conclusões taxativamente positivas. Em face do rol de obras editadas, sem dúvida já teriam passado aqueles merencórios tempos em que, segundo o juízo de Pablo Gasparini, Gombrowicz era “prácticamente desconocido en el Brasil”...

Ou não? O quadro que ora se exibe diante de nós apresenta avanços irrefutáveis. Infelizmente, contudo, não avanços de tal monta, por enquanto, que nos permitam abrir mão por completo dos termos em que se manifestou o estudioso argentino. Em que pese o fato de se haver ampliado o círculo de potenciais leitores brasileiros dos textos gombrowiczianos, agora de acesso mais fácil, já que disponíveis em tradução em maior número nas prateleiras, o criador de Ferdydurke, temo, continua relegado a uma posição algo precária nas letras de nosso país, sua limitada fama local nem de longe está à altura de seus méritos artísticos, sua produção já traduzida persiste, amplamente, na condição de terra incognita – inclusive para a academia – e persistem, ademais, substantivas lacunas a preencher por novas, imprescindíveis investidas tradutórias. Malgrado possuirmos três edições diferentes de Pornografia, permanecem fora de nosso alcance em língua portuguesa a genial prosa romanesca de Trans-Atlantyk, bem como o surpreendente folhetim “gótico” Opętani (Possuídos). Malgrado a intensa circulação internacional das peças gombrowiczianas pelos palcos, a dramaturgia do escritor continua em sua maior parte não traduzida – e toda ela inédita no Brasil.12 E a versão brasileira do Cours de philosophie en six heures un quart não chega a servir de consolo perante a falta de tradução de títulos fundamentais como o Testament (Testamento) ou as Wędrówki po Argentynie (Excursões pela Argentina), por exemplo, sem mencionar a extraordinária proeza de invenção de escrita – e de arrojo intelectual – do Dziennik (Diário)!

Posto tudo isso,13 ficam demarcadas as circunstâncias das duas iniciativas que dediquei à Iwona, księżniczka Burgunda. Traduzi a peça em 2003, ainda em um contexto de inexistência de obras de Gombrowicz em versões brasileiras elaboradas de primeira mão a partir da língua polonesa. E mesmo consideradas as traduções indiretas, o pano de fundo de então era de urgente carência de textos do autor em português. Nesse quesito, de lá para cá o panorama tomou feições menos tristonhas: o total de obras traduzidas aumentou e títulos indispensáveis do legado criativo gombrowicziano foram somados ao acervo de nossas letras.14 Mas o cômputo geral das realizações tradutórias publicadas acusa um renitente desequilíbrio: sob a sombra do romance, outros gêneros em que o autor criou obras-primas vêm se mantendo intocados, sistematicamente à margem do interesse das editoras. Voltando a dois sintomáticos exemplos já mencionados, ainda não dispomos sequer de uma seleta das mais de mil páginas do Diário. E a produção dramática de Gombrowicz, da mesma forma, continua sem uma única edição no Brasil. Esse pano de fundo já diz o suficiente sobre os porquês do projeto de publicação em livro de Ivone, princesa da Borgonha. Mas convém assinalar outro contexto em que minha tradução da peça se insere.

Gombrowicz em cena: o teatro como máquina de traduzir

No terceiro capítulo de Testament, Gombrowicz mergulha em suas memórias da época em que escreveu Iwona, księżniczka Burgunda, sua primeira obra como dramaturgo. O autor havia publicado pouco antes seu primeiro livro, um volume de contos15 que lhe “rendeu certo prestígio nos círculos de vanguarda” (Gombrowicz, 2012b, p. 25), mas cuja repercussão foi comentada “com certa comiseração” (p. 24) nos cochichos da família: “Criticaram o Witold” (2012b, p. 24)... Leiamos:

O que fazer? Eu ainda não sentia ter forças para a disputa com meu destino. Para ganhar tempo, comecei uma peça de teatro. Assim nasceu Ivone, princesa da Borgonha.

Essa obra me proporcionou uma surpresa. Publicada em 1935 (se bem recordo),16 na revista literária Skamander, Ivone não despertou maior atenção e os teatros poloneses do pré-guerra não se interessaram por ela. (Peguei então a mania de desdenhar das atrizes e, para humilhar as mais famosas, eu me apresentava toda vez que as via; quando, pela quinta vez, eu me apresentei galantemente a uma delas em alguma recepção, ela agarrou um copo d’água e despejou em minha cara gritando: “agora, o senhor vai se lembrar de mim!” Quem sabe se eu não me apresentasse assim às atrizes...). Enfim, basta dizer que na Polônia pré-guerra Ivone passou despercebida e eu quase me esqueci dela quando a guerra me isolou na Argentina.

(Gombrowicz, 2012b, p. 26)

Tempos depois, contudo, “como fruta madura de uma árvore, despencou sobre mim o sucesso da peça em Paris, em Estocolmo e noutros lugares” (Gombrowicz, 2012b, p. 26).

Gombrowicz silencia sobre um detalhe que não deve de maneira alguma passar em branco. O êxito internacional de Iwona nos palcos é obra das encenações – e, portanto, também das traduções – da obra. Isolado em seu desterro na Argentina, aliás, o próprio escritor deu um passo decisivo para a fortuna cênica de seus textos teatrais pelo mundo. Sua segunda peça, Ślub (O casamento), cuja redação se inicia em Buenos Aires ainda durante a Segunda Guerra Mundial e se conclui em 1946, é publicada primeiro em versão para a língua espanhola, em 1948,17 e só em 1953 vem a lume no original polonês.18 E a formidável tradução do texto foi elaborada conjuntamente por Alejandro Rússovich e Witold Gombrowicz.

Rússovich escreveu um pequenino e valioso relato sobre a experiência de “trasladar del polaco al castellano la obra que Gombrowicz consideraba culminante en su producción teatral, la más lograda expresión de su concepción del mundo y de la vida” (Gombrowicz, 2018, p. 97). A bem-sucedida parceria tradutória vai sendo evocada sugestivamente. Desde logo, toma vulto nas palavras de Rússovich o abismo linguístico entre o castelhano e o polonês, esse idioma eslavo com intimidadoras “declinaciones y los matices sui generis de las consonantes que, por sí solas, entregan buena parte del significado”:

Yo no dominaba el polaco – a excepción de algunos versitos que aprendí de memoria y todavía recuerdo –, pero Witold me recitaba el texto en su polaco expresivo y vibrante para lograr, al menos en parte, una sonoridad y un ritmo similar en castellano. Penosa tarea, erizada de dificultades; a menudo teníamos que inventar nuevas combinaciones de palabras para aproximarnos al original.

(Gombrowicz, 2018, p. 97)

E tudo isso em pleno alvoroço do “Café Rex, de la calle Corrientes y, algunas veces, en la Costanera, a grito pelado, que amortiguaban el viento y las olas leonadas del Río de la Plata” (Gombrowicz, 2018, p. 97).

Convenhamos que, nesses cenários, a tarefa dos tradutores não terá sido um ininterrupto suplício, mas é preciso reconhecer: quantos obstáculos foram enfrentados ao longo do trajeto desde Ślub até El casamiento! Em seu relato, Rússovich salienta o cerne dilemático da operação de traslado: de um lado, a tradução anulava, “en cierto modo, el texto originario, transportándolo a un idioma que nada tenía que ver con el polaco”; e de outro lado, ao mesmo tempo, “se trataba de conservar el sentido, el ritmo, la sonoridad y hasta las deformaciones de la lengua” gombrowicziana (Gombrowicz, 2018, p. 97). Afinal, porém, todos os percalços são vencidos, “la tensión y el arduo trabajo” (Gombrowicz, 2018, p. 97) de seis meses de desafio criativo chegam a seu resultado, “un texto nuevo, una verdadera reescritura” (Gombrowicz, 2018, p. 98).19 A tradução – assim como a crítica, conforme as conhecidas reflexões de Antoine Berman – “est nettement et clairement quelque chose de nécessaire, entendons par là quelque chose qui a une nécessité a priori fondée dans les oeuvres langagières elles-mêmes” (Berman, 1995, p. 39).20 Crítica e tradução, vale a pena sempre insistir, “rendent les oeuvres plus pleines en révélant leur signifiance in-finie” (Berman, 1995, p. 39). Nesse sentido, ambas são vitais para as obras e estão ontologicamente ligadas a elas, já que as próprias obras autorizam e reclamam uma e outra, carecem de uma e de outra, afirma Berman, “pour se communiquer, pour se manifester, pour s’accomplir et se perpétuer” (Berman, 1995, p. 39).

Obviamente, em cada situação concreta que se tenha em vista, acresce à necessidade a priori de traduzir, segundo os termos do teórico francês, uma série de outras necessidades. No caso pessoal de Gombrowicz, como não custa imaginar, a difícil condição de exilado é um fator determinante na iniciativa tradutória. E quanto a Ślub – ou a qualquer outra obra de literatura dramática engendrada no complexo campo de forças da modernidade teatral –, um fator crucial parece tornar o imperativo da tradução ainda mais premente. É “apenas no palco”, adverte Jean-Pierre Sarrazac, que, ao pé da letra, “o drama21 [...] pode acontecer”; “o texto de teatro em sua existência literária” não pode ser separado de seu “devir cênico”, daquilo “que, nele, pede pelo teatro, pela cena” (Sarrazac, 2017, p. XV). Discordo, em parte, do raciocínio de Sarrazac: o drama também acontece, literalmente, na intimidade da leitura individual, pois também ela, à sua maneira, é performance.22 Feita essa ressalva, entretanto, endosso convictamente a afirmativa do estudioso sobre a pulsão inestancável a atravessar o texto teatral rumo ao teatro. Esse vetor intrínseco aos textos dramáticos, ainda mais exponenciado pela ascensão da figura moderna do encenador, integra uma dinâmica poderosa, que importa ressaltar. A exigência do devir cênico, instando que se abra caminho para o drama até os palcos, para fazê-lo acontecer no espaço-tempo compartilhado e no corpo coletivo do espetáculo, implicará cedo ou tarde traduzir o texto dramático para línguas – e plateias – estrangeiras.

Desse ponto de vista, o teatro é uma grande máquina de traduzir. O que se demonstra, à perfeição, no caso gombrowicziano. Em 1963, o jovem diretor argentino Jorge Lavelli encena em Paris Le mariage, vencendo então o prestigioso Concours des Jeunes Compagnies. Em janeiro do ano seguinte, o espetáculo estreia sua histórica temporada no Théâtre Récamier e a partir daí se franqueiam a Gombrowicz, sucessivamente, mais e mais territórios cênicos (e linguísticos) pelo mundo afora. Em 1966, Alf Sjöberg encena Vigseln em Estocolmo, no Kungliga Dramatiska Teatern; em 1968, Die Trauung estreia no Schillertheater, na então Berlim ocidental, sob a direção de Ernst Schröder; também em 1968, Mario Missiroli monta Il matrimonio em Milão. Para não alongar em demasia a lista de nomes, datas e localidades, baste um resumido balanço global: constam no site oficial de Gombrowicz, só no que respeita a Ślub (e o registro está bem longe de ser exaustivo!), encenações em quase vinte e cinco países. E a obra tem traduções publicadas em uma vintena de idiomas, entre os quais o árabe, o coreano e o grego moderno.23

No universo lusófono, o fenômeno das traduções gombrowiczianas para o teatro também deixou rastros. Salvo erro, a dramaturgia de Gombrowicz subiu ao palco em português, pela primeira vez – um tanto tardiamente –, em 1971, na montagem portuguesa de Ivone, princesa de Borgonha realizada pelo Teatro Experimental de Cascais, sob a direção de Carlos Avilez. E, por coincidência, a uma visita do TEC ao Brasil em 1980, para apresentações da companhia no Rio de Janeiro e em São Paulo, nossas plateias devem seu primeiro e tardio contato com Ivone. Nesse pano de fundo, cujo vazio fala por si só, nasceu em 2003 minha Ivone brasileira. Traduzi a peça por encomenda do ator e encenador belga Thiérry Trémouroux. Naquele mesmo ano, sob a direção de Trémouroux, o texto foi levado à cena pelo Grupo L’Acte – Atos da Criação Teatral, no Teatro da Aliança Francesa de Botafogo, no Rio de Janeiro.

Ivone, princesa da Borgonha: entre o palco e o livro

Infelizmente, não acompanhei na época a recepção do espetáculo. Guardo a vaga lembrança de ter lido nalgum jornal uma crítica de Barbara Heliodora, severa com a encenação, mas elogiosa quanto ao texto de Gombrowicz (lembrança suspeitíssima, é claro). Só tive chance de assistir à peça uma única noite. De novo infelizmente, não me dei o trabalho de fazer anotações. Do que a memória de espectador reteve, no calor da hora, pouco se conservou incólume após duas décadas: o olhar duro e sombrio de Lorena da Silva como Ivone, entre a petulância e o pânico; a brilhante, impagável verve cômica de Bel Garcia como a rainha Margarida, acompanhada pelo vigoroso rei Inácio de Gláucio Gomes, também de uma exuberante comicidade. Para registro das informações indispensáveis, reproduzo o programa da peça:


Figura 1
Programa da peça Ivone, princesa da Borgonha (anverso)
Fonte: Arquivo pessoal

Figura 2
Programa da peça Ivone, princesa da Borgonha (verso)
Fonte: Arquivo pessoal

E antes de passar a alguns pontos que, revendo hoje os meandros da saudosa empreitada tradutória, chamam particularmente minha atenção, retorno mais uma vez ao já citado Testament, para que o próprio Gombrowicz apresente um resumo de Iwona:

A história tragicômica de Ivone pode ser sintetizada em poucas palavras. O príncipe Felipe, sucessor do trono, encontra em um passeio essa moça nada tentadora... esse espavento... Ivone é molenga, apática, fraquinha, tímida, chata e medrosa. Desde o primeiro instante, o príncipe não consegue suportá-la, ela o enerva desmesuradamente; mas, ao mesmo tempo, ele não suporta ter de desgostar da desventurada Ivone. E explode nele uma revolta contra a lei da natureza que ordena aos rapazes só amarem as moças atraentes. – Não me submeterei a isso, eu vou amá-la! – ele lança um desafio à sua natureza e fica noivo de Ivone.

Introduzida na corte real como noiva do príncipe, Ivone torna-se um fator de dissolução. Sua presença muda, assustada, seus numerosos defeitos fazem vir à mente de cada pessoa suas próprias faltas ocultas, máculas, pecadilhos... e em pouco tempo a corte se transforma em uma incubadora de monstros. E cada um desses monstros, sem excluir o príncipe, ofega de desejo de assassinar a insuportável Ziquizira. Por fim, a corte mobiliza todos os seus fulgores, todas as superioridades e magnificências e, “de cima”, mata Ivone.

(Gombrowicz, 2012b, p. 27)

“Eis aí a história...” – prossegue o autor e (se) pergunta: “é tão difícil de entender?”; suas mordazes considerações restantes também merecem transcrição:

Estou porém inclinado a supor que tenho algum azar, por força do qual o mais simples, o mais claro em minhas obras é interpretado da maneira mais fantástica e hoje ainda me acontece de ler críticas de Ivone em que se afirma que ela é uma sátira política do regime comunista na Polônia, que Ivone é a Polônia, ou a liberdade, ou que a peça é “uma sátira da monarquia”. Uff!

(Gombrowicz, 2012b, p. 27)

O desabafo (ou rabugice?) de Gombrowicz quanto às interpretações fantasiosas da obra tangencia um problema muito importante, que logo será retomado. E a singular comicidade de Iwona – bem evidenciada na síntese da peça em Testament, assim como em sua encenação brasileira –, igualmente. Comecemos, no entanto, pelo problema dos paratextos.

Colegas de ofício estão cansados de saber: a máquina de traduzir do teatro tem pressa. Frequentemente, pressa ainda maior do que a das editoras e do mercado do livro. O que de saída costuma impor limites à possibilidade de um aparato paratextual mais desenvolvido. Participando passo a passo, de perto, do processo de criação cênica, eu poderia me incumbir em carne e osso das funções paratextuais, trazendo informações complementares, por exemplo, ou esmiuçando junto a toda a trupe determinado trecho do texto traduzido (bem como do original). Como não foi o caso e eu precisava correr contra os ponteiros do relógio, decidi pelo que me pareceu menos pior. Abri mão por completo de notas do tradutor e providenciei um único adendo como paratexto: as sucintas indicações sobre atuação e direção que Gombrowicz elaborou para a primeira edição de Iwona, em 1938, na revista Skamander. Não incluídas na primeira edição em livro da peça, em 1958, segundo a vontade do próprio autor,24 ainda assim essas indicações me pareciam possuir relevância estratégica para os trabalhos da montagem, na medida em que davam a ver, em linhas gerais, como Gombrowicz imaginava seu texto na dimensão da mise en scène.

E nessa mesma medida, como uma visão cênica de Ivone a partir da qual – ou à revelia da qual – outras visões podem se propor, o paratexto pensado outrora para o palco se mostra relevante para a tradução sob forma impressa. Mas o projeto do livro permite e pede acréscimos paratextuais. Um, em especial (sem falar em uma caprichada introdução e, com certeza, pés de página do tradutor). A mencionada publicação de Iwona na Skamander trazia, além das “Notas sobre atuação e direção”, outro pequeno escrito de Gombrowicz à guisa de introito: uma saborosa síntese da ação da peça, ato a ato. Também esse material foi suprimido da primeira edição em livro da obra. Para fins da encenação brasileira, julguei o texto de menor utilidade e também resolvi suprimi-lo. Para a publicação, ao contrário, sua inclusão como paratexto ganha importância, em conformidade, aliás, com a edição polonesa mais recente do teatro completo do autor (de 2012), que estampa esse resumo antes da peça. Por descuido, ao que tudo indica, essa edição não incluiu, no entanto, as “Notas sobre atuação e direção”, o que já acarretou consequências danosas: a recente edição argentina do teatro completo de Gombrowicz (de 2018), que deu à estampa a primeira versão castelhana de Yvonne elaborada a partir do polonês, tampouco incluiu as “Notas”.

Outra questão a solicitar reexame no caminho da Ivone brasileira do palco (de volta) para o livro: os antropônimos. A manobra de estrangeirização seria de se cogitar em vista da circulação literária da obra? Em vista do espetáculo, a escolha tradutória não foi custosa. Dadas as dificuldades de brasileiros (e não só!) com a pronúncia da grafia polonesa, de imediato tomei a decisão de nacionalizar a antroponímia da peça. Em vez de Małgorzata, portanto, para recorrer a um exemplo categórico, uma doméstica Margarida. E assim por diante, em todas as dramatis personae. Para uso de atrizes e atores, é bem verdade, haveria como dar jeito no inconveniente com um guia de pronúncia. De todo modo, a manutenção dos nomes próprios em sua forma polonesa continuaria a ser um problema no processo de encenação. E possivelmente, também, na recepção do espetáculo. Por seu turno, a concepção do diretor poderia justificar e requerer antropônimos poloneses. Como não foi o caso, porém, assunto encerrado. Até agora... Repetindo então a pergunta: a publicação tornaria preferível a grafia estrangeira para os nomes próprios, haveria maior ganho na hipótese dessa escolha?

Minha leitura de Iwona me faz crer que não. Observe-se que a corte na qual transcorre a ação é destituída de marcas de nacionalidade e de coordenadas físicas ou temporais definidas, constituindo antes um espaço simbólico, uma espécie de lugar modelo, em que as interações sociais estão rigidamente submetidas a hierarquias, protocolos, estereotipados papeis herdados. Daí o efeito corrosivo causado pela inaudita presença de Ivone nesse universo. Em seu desaire, em sua mudez, em seu constante desajuste ao que a cerca ali, a personagem põe todo aquele vistoso castelo de cartas em xeque. E paga por isso com a morte: ela “tem de perecer, como um bode expiatório, oferecido em sacrifício” (Franczak, 2012, p. 464) para de novo cimentar o status quo. À luz desse entendimento da peça (que de modo algum exclui outros, que fique bem claro), decifrando a obra nessa chave, não vejo vantagem tradutória na opção “Ignacy”, digamos, em vez de dar ao rei o nome Inácio. Mas a despeito de não mudar a solução adotada para a encenação, não deixo de tirar proveito da reconsideração do problema. Uma nota do tradutor no livro pode transcrever os antropônimos poloneses, tornando-os assim um material disponível para a leitura: tanto uma leitura de Ivone como texto literário traduzido, quanto uma leitura do texto na perspectiva de sua nova realização no palco.

Redestinar Ivone ao suporte impresso e ao domínio da literatura obriga a rever a tradução de ponta a ponta em um aspecto formal delicado, nada fácil de equacionar. Muito embora culta, a língua das personagens de Iwona volta e meia se vale do coloquial, alternando estilos e registros com surpreendente vivacidade e graça. Traduzindo a obra para o teatro, tomei sistematicamente o cuidado de consultar os ouvidos, em busca das modulações da língua portuguesa falada no Brasil. Assim, para ficar em apenas alguns exemplos, a primeira pessoa do plural no polonês se desdobra ora em “nós”, ora em “a gente”; a contração “pra” é ubíqua e abundam as ocorrências de pronomes pessoais do caso reto complementando verbos. No saldo geral, essa estratégia coloquializa o texto traduzido em um grau bastante mais acentuado do que o original. Mas o efeito “naturalizador” e atualizador desse tipo de escolha era bem-vindo no palco: as réplicas ganhavam cores e cadências mais enérgicas, mais expressivas. De novo, todavia, a perspectiva da publicação impõe questionamento e reflexão: no livro, o esforço de coloquialização continua bem-vindo? Que efeitos textuais decorrem da opção de infletir a escrita aos modos da fala?

Vem a calhar nesta altura um pequeno recorte da minha tradução para efeito de amostragem, um trecho da cena do Ato I na qual Ivone adentra o palco. A personagem é acompanhada por duas tias. Sentam-se as três em um banco e, avistando nas proximidades um grupo de jovens – o príncipe Felipe, entre amigos da corte –, as tias tentam estimular a sobrinha a um comportamento “convidativo”: “Mas dê um sorriso, um sorriso, filhinha”, “Por que esse desânimo?” Ivone nada responde e a situação acaba despertando a curiosidade dos jovens da corte:




E vejamos também o mesmo trecho nas versões francesa – de Konstanty Jeleński e Geneviève Serreau – e castelhana – de Bożena Zaboklicka e Pau Freixa:




Seja no francês (mais), seja no castelhano (menos), são perceptíveis os esforços em prol de um diálogo vivo, com algo do tempero e da suculência da troca verbal falada. Repare-se, numa versão e noutra, nas divertidas expressões coloquiais utilizadas: “tas de saindoux maussade” (pedaço de banha azeda), “grincheuse” (rabugenta), “funèbre crapaud” (feiosa fúnebre), “adefesio” (estrupício), “perro apaleado” (cachorro surrado), “plañidera enojada” (carpideira entrunfada). Na versão francesa, repare-se na langue familière da construção empregada pela Tia I: “On a économisé” (a gente economizou); no texto castelhano, no oralíssimo reforço enfático da repetição com o adendo do superlativo em “¡Delante de sus narices! ¡Delante de sus mismísimas narices!”

No entanto, acredito ter levado o empenho de coloquialização um pouco mais longe em minha Ivone. Já por força da tradicional distância do padrão escrito brasileiro em relação à fala, meu parti pris tradutório impunha uma diretriz de metódica infração desse padrão – o que não acontece com respeito às normas do francês e do castelhano, respectivamente, nas traduções de Jeleński e Serreau, e de Zaboklicka e Freixa. Para apenas duas ocorrências bastante ilustrativas: no fragmento citado, ali onde se lê em francês “On va lui montrer” (“¡Vamos a mostrarle [...]!”, em espanhol), o passo correspondente em português traz: “Vamos mostrar pra ela”; e ali onde se lê em espanhol “¡Déjenla [...]! (“Laissez-la”, em francês), lê-se na versão brasileira: “Deixem ela [...]!” Como já observado anteriormente, o palco recebe a frequência de onda típica da língua falada com perfeita naturalidade. Minha aposta, mantendo essa mesma frequência de onda na publicação, transpondo para o livro todas as soluções tradutórias coloquializantes que adotei em função do espetáculo, é que o grão da fala possa (re)percutir (n)o texto impresso, fazendo, quem sabe, a escrita estranhar um pouco a si mesma.

O pequeno trecho da peça no qual nos detivemos descortina vários traços do cômico em Iwona. A olhos brasileiros, desconfio inclusive que o humor da cena pareça familiar. Para mim, pelo menos, tudo nela tem um quê de Nelson Rodrigues. As Tias querendo empurrar a todo custo a sobrinha encalhada, a rapaziada zombando sem dó da pobrezinha... Postas num subúrbio carioca, as personagens e a situação se deixariam somar tranquilamente ao repertório do autor de Vestido de noiva. Como em muitas peças do dramaturgo brasileiro, muito da comicidade de Iwona vem exatamente das personagens e das situações, manipuladas com absoluta mestria, entre o farsesco e o grotesco, entre o absurdo e o trágico, no desenrolar da ação. Mas outro tanto do cômico gombrowicziano, assim como em Nelson Rodrigues, é façanha de estilo, inconfundível criação de linguagem. Os xingamentos endereçados a Ivone ilustram isso com clareza. Não obstante seu teor agressivo – e o assédio à personagem antecipa de certa maneira o clímax de violência de que ela será vítima no desfecho da obra –, os epítetos que Cipriano e Cirilo reservam a Ivone são engraçadíssimos. E eis aí outro desafio tradutório sempre à espreita no texto: uma pletórica inventividade verbal devotada ao riso.

Por fim, é preciso salientar ainda o peculiar desafio do silêncio em Iwona, księżniczka Burgunda. Desafio para a leitura e a encenação25 da obra, bem como para sua tradução. Ao longo dos quatro atos da peça, Gombrowicz só concede a Ivone um punhado de palavras, esparsas pelo texto em oito (!) enxutas réplicas. De resto, a personagem cala. Entra em cena, sai de cena, interage com as demais personagens, recusando-se, todavia, reiteradamente, às convenções e jogos de linguagem que tentam lhe impor. Por quê? “E contra o que ela se cala?”, indaga um estudioso da obra, “Quem, então, é Ivone?” (Markowski, 2004, p. 169).

O insistente mutismo da personagem está cifrado no texto da peça em simples rubricas, que a princípio não aparentam ser qualquer problema na operação tradutória. Quando Ivone se furta a replicar ao que lhe é dito, lemos na edição francesa, com destaque em itálico e alinhamento à direita da página: “Silence d’Yvonne”. Na tradução para a montagem brasileira, segui a mesma disposição gráfica da edição polonesa em que me baseei: nome da personagem em caixa alta, seguido da rubrica entre parênteses, destacada em itálico. Mas a solução de outrora – “IVONE (calada)” –, hoje, me deixa insatisfeito. O particípio passado sugere um estado; o original, por sua vez, traz o presente do verbo “milczeć” na rubrica: “IWONA (milczy)”.

“IVONE (cala)”: poderoso, eloquente silêncio, agora talvez traduzido de modo mais exitoso. Esse ato de não fala exige expressis verbis seu devir – em cena e na leitura.

Para (não) encerrar por ora

Não sem alguma surpresa, verifico um saldo geral bastante positivo ao cabo da revisitação da minha empreitada tradutória de anos atrás. Previsivelmente, a mudança de escopo e de suporte – do calor e da volumetria da cena e de uma encenação em particular, para a branda superfície impressa – convida a um e outro retoque ou acréscimo, como ficou demonstrado nos exemplos que comentei na seção anterior. Em seu conjunto, entretanto, as opções que fiz outrora continuam a me parecer bem-sucedidas. E, mais importante, assim também me parecem as premissas de que parti e os critérios que orientaram o processo de traslado. Na trilha percorrida até aqui, entretanto, minha autoavaliação conta pouco. É no esforço de autorreflexão, de descrição do meu próprio fazer, que, espero, há de se encontrar alguma contribuição para o conhecimento da complicada e trabalhosa oficina da tradução teatral, diante das sobrepostas demandas do palco e do livro, do espetáculo e das letras.

Que o ofício proporciona alegrias, talvez desnecessário dizer. Entre elas, a de compartilhar. Em um texto de 1969, escrito logo após a morte de Gombrowicz, o grande crítico polonês Konstanty Puzyna lançou mão de um símile humilde e fecundo: com as peças gombrowiczianas, afirmou, “pode-se cultivar um teatro viçoso e extraordinário, assim como, de um caroço, se cultiva uma árvore” (Puzyna, 2015, p. 185). Lida, de novo encenada, Ivone, princesa da Borgonha está pronta para o cultivo local.

Material suplementar
Referências
Barańczak, Stanisław. Ocalone w tłumaczeniu: szkice o warsztacie tłumacza poezji z dodatkiem małej antologii przekładów-problemów. Wyd. 3. Kraków: a5, 2004.
Berman, Antoine. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Gallimard, 1995.
Bigliazzi, Silvia; Kofler, Peter & Ambrosi, Paola (Ed.). Theatre translation inperformance. London/New York: Routledge, 2013.
Figueiredo, Guilherme. Tartufo 81. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
Franczak Jerzy. “Trzy i pół dramatu”. In: Gombrowicz, Witold. Dramaty. Kraków: Wydawnictwo Literackie, 2012a. p. 460-470.
Gasparini, Pablo. El exílio procaz: Gombrowicz por la Argentina. Rosario: Beatriz Viterbo, 2007.
Gombrowicz, Witold. Théâtre: Yvonne, princesse de Bourgogne, Mariage. Traduction par K. A. Jelenski, Geneviève Serreau, Koukou Chanska & Georges Sédir. Paris: Julliard, 1965.
Gombrowicz, Witold. Bakakai. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.
Gombrowicz, Witold. A pornografia. Tradução de Flávio Moreira da Costa. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1970.
Gombrowicz, Witold. A pornografia. Tradução de Tati de Moraes; revisão da tradução Yan Michalski. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
Gombrowicz, Witold. Dramaty. Wyd. 2. Kraków: Wydawnictwo Literackie, 1988.
Gombrowicz, Witold. Ferdydurke. Tradução de Tomasz Barciński. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Gombrowicz, Witold. Cosmos. Tradução de Tomasz Barciński e Carlos Alexandre Sá. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Gombrowicz, Witold. “Contra os poetas”. Tradução de Marcelo Paiva de Souza. Poesia Sempre, 30, p. 21-29, 2008.
Gombrowicz, Witold. Pornografia. Tradução de Tomasz Barciński. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Gombrowicz, Witold. Curso de filosofia em seis horas e quinze minutos. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.
Gombrowicz, Witold. Dramaty. Kraków: Wydawnictwo Literackie, 2012a.
Gombrowicz, Witold. Testament: rozmowy z Dominique de Roux. Kraków: Wydawnictwo Literackie, 2012b.
Gombrowicz, Witold. Teatro completo. Traducción de Bożena Zaboklicka, Pau Freixa, Witold Gombrowicz y Alejandro Rússovich. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2018.
Jarzębski, Jerzy. Natura i teatr: 16 tekstów o Gombrowiczu. Kraków: Wydawnictwo Literackie, 2007.
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Morini, Massimiliano. Theatre translation: theory and practice. London: Bloomsbury, 2022.
Puzyna, Konstanty. “Pestka”. In: Puzyna, Konstanty. Czasem coś żywego. Teksty najważniejsze. Warszawa: Agora, 2015. p. 185-192.
Ratajczakowa, Dobrochna. “Sługa dwóch panów: dwoisty żywot dramatu”. In: Markiewicz, Henryk (Wybór). Problemy teorii literatury, seria 4, prace z lat 1985-1994. Wrocław: Ossolineum, 1998. p. 259-268.
Sarrazac, Jean-Pierre. Poética do drama moderno: de Ibsen a Koltès. Tradução de Newton Cunha, Jacó Guinsburg & Sonia Azevedo. São Paulo: Perspectiva, 2017.
Skibińska, Elżbieta (Red.). Gombrowicz i tłumacze. Łask: Oficyna Wydawnicza Leksem, 2004.
Totzeva, Sofia. Das theatrale Potential des dramatischen Textes: ein Beitrag zur Theorie von Drama und Dramenübersetzung. Tübingen: Gunter Narr Verlag, 1995.
Worthen, William B. Dramat: między literaturą a przedstawieniem. Tłumaczenie Mateusz Borowski, Małgorzata Sugiera. Kraków: Księgarnia Akademicka, 2013.
Zumthor, Paul. Performance, réception, lecture. Longueuil: Le Préambule, 1990.
Żółkoś, Monika. Ciało mówiące: Iwona, księżniczka Burgunda Witolda Gombrowicza. Gdańsk: słowo/obraz terytoria, 2001.
Notas
Notas
1 Para uma apresentação sintética da vida e da obra de Gombrowicz, ver Witold Gombrowicz - Biography | Artist | Culture.pl. Acesso em: 5 dez. 2022.
2 Salvo indicação em contrário, é de minha autoria a tradução das citações de obras estrangeiras.
3 Jarzębski (2007, p. 91), acertadamente, sublinha na dramaturgia gombrowicziana um caráter de constante experimentação formal.
4 A primeira edição de Operetka, convém recordar, data de 1966.
5 Ver alguma discussão e alguma bibliografia em Ratajczakowa (1998), Worthen (2013), Levý (2011, esp. o cap. 5, “Drama translation”, p. 129-166), Totzeva (1995), Bigliazzi, Kofler & Ambrosi (2013), Morini (2022).
6 Para duas referências clássicas – e inspiração – ver Figueiredo (1980) e Barańczak (2004).
7 Retomo nesta seção do artigo os dados e algumas reflexões que apresentei em Bloomington, na Universidade de Indiana (EU), em 2017, no simpósio “Unforeseen Constellations: Reading Postcolonial Poland with South America”. E aproveito a ocasião para deixar registrados meus agradecimentos à Profª Drª Joanna Niżyńska, à época diretora do Centro de Estudos Poloneses daquela instituição, pelo gentil convite para que eu participasse do evento.
8 O volume coletivo Witold Gombrowicz nasz współczesny (Jarzębski, 2010), traz contribuições valiosas – de Paul Beers, Tokimasa Sekiguchi, Dalibor Blažina, Krystyna Lipińska Iłłakowicz e Bożena Zaboklicka – sobre a temática da recepção do escritor, respectivamente, na Holanda, no Japão, na ex-Iugoslávia, nos Estados Unidos e na Catalunha.
9 Aí incluídas não só as indiretas, como também as diretas. Sobre Gombrowicz em tradução, ver Skibińska (2004).
10 O livro publicado em 2007 originou-se da tese de doutorado de Gasparini, defendida em 2004 na Universidade de São Paulo. O pesquisador integra a equipe de língua espanhola e literaturas espanhola e hispano-americana do Departamento de Letras Modernas da USP.
11 O pequeno livro – inconcluso – resultou de anotações preparadas em francês, com base nas quais Gombrowicz, nos últimos meses de vida, proferiu lições de história da filosofia para sua esposa, Rita Gombrowicz, e o crítico Dominique de Roux.
12 Tive notícia nos últimos anos de edições das peças em Portugal (em 2018, 2019 e 2021), mas ainda não consegui obtê-las. Para os respectivos dados bibliográficos, ver BNP - Bibliografia Nacional Portuguesa (bnportugal.gov.pt). Acesso em: 5 dez. 2022.
13 Evidentemente, numerosos fatores estão por trás da problemática acolhida de Witold Gombrowicz no Brasil. A questão é intrincada e não cabe aqui sua discussão, que envolveria, entre outros temas, as desigualdades na “República Mundial das Letras” e todo o mapa geopolítico e econômico dos (des)encontros e dissimetrias nas relações e fluxos entre as diversas culturas.
14 Em uma pequena contribuição nesse sentido, traduzi para a revista Poesia Sempre o célebre, controverso ensaio “Przeciw poetom” (Contra os poetas). Ver Gombrowicz (2008).
15 Pamiętnik z okresu dojrzewania (Memórias da época do amadurecimento), dado à estampa em 1933.
16 A peça é escrita em 1935 e publicada na Skamander em 1938.
17 O livro é dado à estampa pelas Ediciones EAM, em Buenos Aires, graças à providencial ajuda financeira de uma amiga argentina de Gombrowicz, Cecilia B. Debenedetti.
18 Ślub é publicado em Paris pelo Instytut Literacki, em um volume que recolheu, além da peça, o romance Trans-Atlantyk. Recordemos que Gombrowicz se torna persona non grata para o regime comunista imposto à sua nação após a Segunda Guerra. Nessas circunstâncias, foi graças ao Instytut Literacki, selo editorial criado por intelectuais dissidentes exilados da Polônia, que os escritos do autor tiveram assegurada a possibilidade de publicação e circulação em sua própria língua.
19 Como costuma se dar nas autotraduções, solitárias ou em parceria, “con añadidos que Gombrowicz hizo, llevado por la música y el espíritu peculiar del castellano”, anota Rússovich (Gombrowicz, 2018, p. 98).
20 O itálico é de Berman (idem quanto à hifenização e aos outros itálicos nas citações seguintes).
21 Sarrazac alude à etimologia grega do termo, do verbo δράω, fazer, agir.
22 Ver o já citado – e fundamental – Worthen (2013). E, para uma discussão mais ampla em torno das noções de performance, recepção e leitura, o pioneiro Zumthor (1990).
23 Ver https://witoldgombrowicz.com/pl/. A página está disponível em polonês, francês, espanhol e inglês.
24 Mas reproduzidas no apêndice crítico da edição de que me servi em 2003, aos cuidados de Jadwiga Grodzicka (Gombrowicz, 1988, p. 324-325).
25 Para um estudo excelente da fortuna cênica de Iwona, desde sua estreia na Polônia na célebre montagem de Halina Mikołajska, em 1957, até as marcantes realizações, já nos anos 1990, de Ingmar Bergman, Karin Beier, Anna Augustynowicz e Grzegorz Jarzyna, entre outras, ver Żółkoś (2001). Ver igualmente, para situar Gombrowicz no longo arco da história do teatro polonês, Kosiński (2010).
Autor notes

E-mail: mrclpvdsz@hotmail.com.


Figura 1
Programa da peça Ivone, princesa da Borgonha (anverso)
Fonte: Arquivo pessoal

Figura 2
Programa da peça Ivone, princesa da Borgonha (verso)
Fonte: Arquivo pessoal






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